Lembrando Zanine

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São poucas as vezes na vida nas quais você está no lugar certo, na hora certa. Não por coincidência, mas por uma muito bem marcada reunião entre antigos amigos e uma obra de arte. Em Brasília, há algumas casas construídas pelo arquiteto autodidata Zanine Caldas. Foi professor na UnB a convite de Darcy Ribeiro em 1958; voltou para cá nos anos 1980; trabalhou com muitas maquetes de Niemeyer e Lucio Costa; ajudou a construir a cidade; revolucionou o jeito de construir com madeira. Falecido em 2001, a memória de Zanine continua muito viva.

Nos últimos dias de abril, tive a oportunidade de passar uma manhã com gente que conhecia muito bem o arquiteto — sua ex-mulher e o filho, que seguiu seus passos. Como cenário, a casa do casal Bettiol, uma obra de arte arquitetada por Zanine no fim dos anos 1970, e que continua firme e forte como uma representação perfeita do trabalho do arquiteto.

Quando o casal Bettiol se mudou para Brasília, em 1962, sem dinheiro, morava na W3, em uma casinha de 120m². Eles sonhavam em construir uma morada grandiosa. Nos tempos de recém-casados, era comum que Betty e Luiz Carlos entrassem no fusquinha e partissem para a área ao lado da Iate Clube para ver o nascer da Lua. Anos depois, quando já podiam escolher onde morar, compraram o terreno demarcado que ficava exatamente onde o fusquinha estacionava nas noites enluaradas. E a decisão por quem construiria a casa foi clara: Zanine.

A obra começou em 1974, e em 1979 os Bettiol se mudaram. Ainda faltava muito para a casa ficar pronta. Só tinha alguns módulos — quarto, cozinha, banheiro. Betty conta que parecia mais um paliteiro, em referência aos troncos verticais que formam a fundação da casa. E o arquiteto queria que o casal já decidisse onde seriam as tomadas, antes mesmo de as paredes estarem de pé.

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A casa hoje é referência não só na arquitetura, mas como um grande espaço de arte. Betty e Luiz foram comprando peças de design, esculturas e quadros ao longo da vida e só uma casa de 1.300m² podia fazer jus a esse acervo. As compras começaram mais como utilidade do que como coleção de arte. Ela explica que sempre preferiu peças com qualidade, que durassem a vida toda — tanto é que a cama do casal ainda é a mesma de quando se casaram, há 54 anos. A coleção foi crescendo tanto que anos atrás se tornou livro, Arte brasileira na coleção Bettiol, da Via Impressa Edições de Arte, que compila as preciosidades espalhadas pela casa de madeira.

Zanine, além de responsável pelo projeto, deixou vários móveis e histórias da construção. Betty lembra que o arquiteto chegou um dia perguntando se ela não queria comprar um caminhão de caxeta, uma madeira bem clarinha, para fazer as bordas das portas. Como a casa tem poucas paredes, e, por isso, poucas portas, a artista plástica achou um exagero. “Ele garantiu que a gente precisaria muito, e eu falei que ficaria com aqueles pedaços sem motivo até os 80 anos. Não tem mais nenhuma”, conta.

Na mesma época, Zanine não pediu, mandou que o casal comprasse quatro pranchas de cinco metros de comprimento de angelim-pedra, outro tipo de madeira. O casal ficou com aquelas pranchas sem sentido por anos, escondidas na garagem. “Quando os filhos se casaram, foi uma prancha para cada um, viraram tampo de mesa. Eu nunca acharia outras peças dessas, ele me fez comprar.” No projeto de Zanine, tudo tem serventia, nada fica sem ser aproveitado. As sobras de madeira das fundações da casa viraram uma bela mesa que fica na área externa.

Fomos conversando, eu, de bloquinho e caneta na mão, e Betty. Ambas sentadas nas famosas e maravilhosas poltronas moles de Sergio Rodrigues, quando chegaram os ilustres convidados. A cineasta Fernanda Borges (ex-esposa de Zanine), o designer Zanini de Zanine (filho de Zanine e Fernanda), o marceneiro Reduzino Vieira (velho amigo da família) e o curador Humberto Macêdo (que estava hospedando os três). A trupe veio a Brasília a convite do CasaPark para participar da abertura da mostra Madeira sustentável — arquitetura e design e da primeira exibição do filme Zanine — o ser do arquitetar.

Em meio a beijos e abraços, Fernanda, que esteve pela última vez na casa incompleta dos Bettiol no começo dos anos 1980, quando morou com Zanine em Brasília, lembrou logo que o pôr do sol daqui “é de matar”. O filho, Zanini, que corria entre as vigas na infância, sacou o celular e se pôs a fazer fotos da casa, encantado com as madeiras, com as estruturas, com os móveis. Para acompanhar todo mundo, desisti do meu bloquinho e fui gravando a conversa no celular mesmo.

A cineasta e Betty são velhas amigas. Quando Fernanda chegou a Brasília, sem conhecer ninguém, fez logo amizade com a esposa do amigo do marido, 26 anos mais velho. “As outras eram muito dondocas”, recorda. Houve uma identificação. As duas são engraçadas, leves, cheias de vida e de memória. Compararam as manchas de pele decorrentes da idade, deram risadas sobre os sinais indisfarçáveis e decidiram que estão mesmo no lucro. Ambas já passaram da barreira dos 70 anos e continuam muitíssimo ativas — Fernanda se aposentou há dois anos, mas adora viver o Rio de Janeiro, e Betty não sossega nunca. Faz arte, compra arte, é ótima anfitriã e até pilota avião.

Fonte: Correio Braziiense

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